Historiador Eric Hobsbawm aponta algumas questões cruciais do século 21
Aos 92 anos, o historiador britânico Eric Hobsbawm continua um
feroz crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o
presidente americano Barack Obama, ao lidar com as consequências da crise
econômica, desperdiçou a chance de construir maneiras mais eficazes de
superá-la. Hobsbawm discute ainda questões globais contemporâneas --como as
tentativas de criar Estados supranacionais, a xenofobia e o crescimento
econômico chinês.
Pergunta - "Era
dos Extremos" termina em 1991, com um panorama de avalanche global --o
colapso das esperanças de avanços sociais globais da era de ouro [segundo
Hobsbawm, 1949-73]. Quais são as mudanças mais importantes desde então na
história mundial?
Eric Hobsbawm - Vejo quatro mudanças principais. Primeiro, o deslocamento do
centro econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul e o leste da Ásia. Isso
já estava começando no Japão nas décadas de 1970 e 80, mas a ascensão da China
desde os anos 1990 vem fazendo uma diferença real.
Em segundo
lugar, é claro, a crise mundial do capitalismo, que vínhamos prevendo, mas que,
mesmo assim, levou muito tempo para ocorrer. Em terceiro, a derrota retumbante
da tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global solo a partir de 2001 --e
essa tentativa vem fracassando de modo muito visível.
Em quarto lugar,
a emergência de um novo bloco de países em desenvolvimento, como entidade
política --os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China]--, não tinha acontecido
quando escrevi "Era dos Extremos".
Pergunta - O que mais o
surpreendeu desde então?
Hobsbawm - Nunca deixo de me espantar com a pura e simples insensatez do
projeto neoconservador, que não apenas fez de conta que a América fosse o
futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma estratégia e uma tática
para alcançar esse objetivo. Pelo que consigo enxergar, eles não tinham uma
estratégia coerente, em termos racionais.
Pergunta - O senhor.
visualiza qualquer recomposição política do que foi no passado a classe
trabalhadora?
Hobsbawm - Não em sua forma tradicional. Marx [1818-83] acertou, sem
dúvida, quando previu a formação de grandes partidos de classe em determinado
estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando foram bem-sucedidos,
não operaram puramente como partidos da classe trabalhadora. Houve três outras
mudanças negativas importantes. Uma delas, é claro, é a xenofobia --que, para a
maior parte da classe trabalhadora é, nas palavras usadas certa vez por
[August] Bebel, "o socialismo dos tolos": proteja meu emprego contra
pessoas que estão competindo comigo.
Em segundo
lugar, boa parte da mão de obra e do trabalho nos setores que a administração
pública britânica qualificava no passado como "graus menores e
manipulativos" não é permanente, mas temporária: são estudantes e
migrantes trabalhando com catering [fornecimento de refeições para linhas
aéreas, gastronomia hospitalar e cozinhas de navios], por exemplo. Assim, não é
fácil enxergá-la como tendo potencial de ser organizada.
A única parte
facilmente organizável desse tipo de mão de obra é a que é empregada por
autoridades públicas, e isso devido ao fato de essas autoridades serem
politicamente vulneráveis.
A terceira e
mais importante mudança é, a meu ver, a divisão crescente gerada por um novo
critério de classe: a saber, a aprovação em exames de escolas e universidades
como critério de acesso a empregos. Pode-se dizer que se trata de uma
meritocracia, mas ela é medida, institucionalizada e mediada por sistemas de
ensino.
Pergunta - Que
comparações o senhor. traçaria entre a crise atual e a Grande Depressão?
Hobsbawm -[A crise de] 1929 não começou com os bancos --eles só caíram dois
anos mais tarde. O que aconteceu, na verdade, foi que a Bolsa de Valores [de
Nova York] desencadeou uma queda na produção, com um índice muito mais alto de
desemprego e um declínio real muito maior na produção do que havia ocorrido em
qualquer momento até então.
A depressão
atual levou mais tempo sendo preparada que a de 1929, que pegou quase todos de
surpresa. Deveria ter sido claro desde cedo que o fundamentalismo neoliberal
gerou uma instabilidade enorme nas operações do capitalismo. Até 2008, isso
pareceu afetar apenas as áreas periféricas --a América Latina nos anos 1990 e
no início da década de 2000, o Sudeste Asiático e a Rússia.
Pergunta - E o que
dizer das consequências políticas?
Hobsbawm - A Depressão de 1929 levou a um
desvio avassalador para a direita, com a exceção notável da América do Norte,
incluindo o México, e da Escandinávia. Na França, a Frente Popular teve apenas
0,5% mais votos em 1936 do que tinha em 1932, de modo que sua vitória assinalou
uma mudança na composição das alianças políticas, e não alguma coisa mais
profunda. Na Espanha, apesar da situação quase ou potencialmente
revolucionária, o efeito imediato e, de fato, também o efeito de longo prazo
foi um desvio para a direita.
Na maioria dos
outros países, especialmente na Europa central e do leste, a política se
desviou para a direita de modo muito acentuado.
O efeito da
crise atual não é tão nítido. Podemos imaginar que grandes mudanças políticas
devem ocorrer não apenas nos EUA ou no Ocidente, mas quase certamente na China.
Mas podemos apenas especular sobre quais serão essas mudanças.
Pergunta - O senhor.
antevê que a China continue a resistir ao declínio?
Hobsbawm - Não há nenhuma razão em especial para prever que a China pare de
crescer de uma hora para outra. A depressão causou um choque grave ao governo
chinês, na medida em que paralisou muitas indústrias, temporariamente. Mas o
país ainda se encontra nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico, e há
espaço enorme para expansão.
Pergunta - Que
avaliação o senhor. faz da administração [do presidente dos EUA, Barack] Obama?
Hobsbawm - As pessoas ficaram tão satisfeitas com a eleição de um homem
como ele, especialmente em um momento de crise, que pensaram que certamente
seria um grande reformador, que faria o que Roosevelt [presidente dos EUA,
1933-45, responsável pelo New Deal, série de programas econômicos e sociais
contra a Grande Depressão] fez.
Mas Obama não o
fez. Ele começou mal. Se compararmos os primeiros cem dias de Roosevelt com os
primeiros cem dias de Obama, o que salta à vista é a disposição de Roosevelt em
aceitar assessores não oficiais, em experimentar algo novo, comparada à
insistência de Obama em se conservar no centro. Acho que ele desperdiçou sua
chance.
Podemos desejar
sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente
encorajadoras.
Pergunta - Existem
lugares do mundo nos quais o senhor. acha que projetos positivos e
progressistas ainda estejam vivos ou tenham chances de ser reativados?
Hobsbawm - Na América Latina, com certeza, a política e o discurso público
geral ainda são conduzidos nos velhos termos do iluminismo --liberais,
socialistas, comunistas. Esses são os lugares onde se encontram militaristas
que falam como socialistas --que são socialistas. Encontram-se fenômenos como
[o presidente] Lula, baseado em um movimento da classe trabalhadora, e [o
presidente boliviano Evo] Morales. Acho que a América Latina se beneficiou da
ausência de nacionalismo étnico-linguístico e de divisões religiosas, e isso
fez com que fosse muito mais fácil conservar o discurso antigo. Sempre chamou
minha atenção o fato de que, até muito recentemente, não se viam sinais de
política étnica. Esta apareceu entre movimentos indígenas no México e no Peru,
mas não em escala remotamente comparável ao que se viu na Europa, na Ásia ou na
África.
Pergunta - Se o senhor.
tivesse que escolher tópicos ou campos ainda inexplorados e que representam
desafios importantes para historiadores futuros, quais seriam?
Hobsbawm - O grande problema é um problema muito geral. Segundo padrões
paleontológicos, a espécie humana transformou sua existência com velocidade
espantosa, mas o ritmo das transformações tem variado tremendamente. Isso
claramente indica um controle crescente sobre a natureza, mas não devemos
imaginar que sabemos para onde isso nos está conduzindo.
Os marxistas
focaram, com razão, as transformações no modo de produção e em suas relações
sociais como sendo geradoras de transformações históricas.
Contudo, se
pensarmos em termos de como "os homens fazem sua própria história", a
grande questão é a seguinte: historicamente, comunidades e sistemas sociais
buscaram a estabilização e a reprodução, criando mecanismos para prevenir-se
contra saltos perturbadores no desconhecido. A resistência à imposição de
transformações de fora para dentro ainda é um fator preponderante na política
mundial, hoje. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a
transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência é o
desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/720155-historiador-eric-hobsbawm-aponta-questoes-cruciais-do-seculo-21.shtml
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